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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Carta da Redação > Marta e a revolução

Marta, cinco vezes eleita melhor jogadora do mundo
Durante boa parte do século XX, vários países sul-americanos passaram por grandes migrações, que contribuíram com a rápida urbanização de suas cidades e ajudaram na popularização do futebol, tornando-o um fator preponderante na formação do caráter local, regional e na identidade nacional.

No Uruguai, o jogo é tão enraizado na psique nacional que muitos habitantes costumam dizer: - “Outros países tem sua história, o Uruguai tem seu futebol.”. Mas o país mais conhecido pela sua identificação com o futebol é o Brasil. Em 1938, o sociólogo Gilberto Freyre falou sobre as características espontâneas e criativas do mulato brasileiro, em contrastes em relação aos europeus. Freyre buscou expressar ideias sobre “identidade nacional” baseadas na alteridade e nesse caso, o individualismo do futebol brasileiro mostrou um belo exemplo disso.

Um importante aspecto da influência do futebol na formação de identidade nacional, que não é levado em conta, é o gênero. Claro, o futebol é considerado esporte masculino na mente mais tradicional dos sul-americanos, exemplificado por uma citação de Pelé: - “Toda criança do mundo que joga futebol quer ser Pelé, o que significa que tenho a responsabilidade de mostrar a eles não apenas como ser um jogador de futebol, mas também um homem.”

O futebol sempre foi parte fundamental da sociedade brasileira. A posição do esporte como bastião da masculinidade foi institucionalmente consolidada em 1941 por um decreto do governo que proibia sua prática por mulheres, o que não apenas desaprovava, mas tornava quem ia contra uma criminosa.

Infelizmente, a proibição durou até 1975, o que significou que quando a segunda leva do movimento feminista inaugurou a profissionalização do futebol para mulheres na década de 70 em países como Alemanha, Estados Unidos e Suécia, a simples ideia de uma mulher chutando uma bola no Brasil ainda era impensável.

Normalmente, o sucesso do futebol feminino é alcançado por países que adotam uma abordagem progressiva nas questões de igualdade tanto social quanto de gênero, elevando assim os esforços para o desenvolvimento do esporte. Esse clamor por igualdade em países como Noruega, renderam uma lei que exige uma quota de 40% de mulheres presentes na diretoria de uma empresa.

Concordando ou não com isso, há de se perceber o quanto esse tipo de sociedade está mais propícia a desenvolver uma atividade específica em qualquer campo, do que outra cuja raiz deixa a mostra o preconceito e desigualdade de gênero.

Surpreendentemente, no epicentro do machismo que é a América Latina, as mulheres brasileiras foram as primeiras a entrar em campo, já em 1921 em São Paulo. O fator “novidade” foi tão explorado que, na época, partidas amistosas eram organizadas e algumas até como parte de atos circenses.

Entretanto, o preconceito estabelecido no Brasil garantiu que o jogo jamais fosse profissionalizado. Situação esta que permanece até hoje mesmo com as ondas de reformas sociais progressistas em outros setores a partir do PT, do ex-presidente Lula e a atual, Dilma Roussef.

Pode-se dizer que a “marginalização” da mulher no esporte foi difundida por toda a América Latina, não sendo uma modalidade predominante em vários países.

Mesmo em esportes sem o mesmo grau de apelo à masculinidade, como tênis, somente Maria Esther Bueno, tricampeã de Wimbledon, vem à mente como um exemplo de atleta brasileira de sucesso.

Claro que invadir o mundo esportivo predominado por homens não é problema exclusivo da América Latina. Um documentário recente de Gabby Logan sobre o “sexismo” no mundo esportivo Reino Unido mostrou as dificuldades que as mulheres enfrentam para tentar se estabelecer em cargos diversos.

A extensão do problema foi muito bem lembrada pelo presidente da FIFA, Sepp Blatter. Mesmo para seus próprios padrões de canalhice, a sugestão de que “belas jogadoras deveriam usar shorts mais apertados para atrair maior interesse do público” foi vergonhosa. O pressuposto em sua declaração de que o esporte só renderá se as mulheres mostrarem seus “atributos” aos espectadores pareceu, na melhor das hipóteses, algo datado; e na pior, algo extremamente ofensivo para muitos fãs do esporte.

Milene Domingues, ex-mulher de Ronaldo Fenômeno

A infeliz declaração de Blatter passou quase despercebida pela mídia brasileira em 2004, escolhendo dar mais razão à sua “queridinha” (do tema) na época, a modelo e rainha das embaixadinhas Milene Domingues. Milene era muito mais do que um simples rostinho bonito. Mostrou habilidade para entrar no livro dos recordes com o recorde de 55.197 embaixadinhas realizadas, e durante algumas temporadas como jogadora profissional na Liga Espanhola. Em sua carreira como modelo, foi destaque e capa de diversos jornais e revista, além de ter sido casada com o atacante Ronaldo (hoje são divorciados). Ela chegou a participar da Copa do Mundo feminina de 2003, com o status de jogadora mais cara da história. Resumidamente, apesar de seu talento inegável, seu potencial de marketing ainda era maior, assim como outros atletas como Anna Kournikova e David Beckham.

Mesmo com esse pano de fundo historicamente negativo, a seleção brasileira de futebol feminino despontou como uma força a ser levada a sério. Considerando todos os problemas e falta de atitudes como a criação de uma liga profissional e a falta de seriedade da confederação responsável, sua ascensão foi algo quase milagroso! Diferente de federações como Estados Unidos, Japão e Suécia, que apoiam e investem na modalidade e colhem de seus frutos, as brasileiras atingiram o sucesso mesmo com a inércia de seus dirigentes, cartolas, etc.

A seleção brasileira feminina ganhou 5 dos 6 últimos campeonatos sul-americanos, duas medalhas de prata nos Jogos Olímpicos, um vice-campeonato mundial em 2007 na China e sua maior jogadora, Marta Vieira da Silva, foi coroada por cinco anos consecutivos como a melhor jogadora do mundo, perdendo o “trono” apenas em 2011, quando o título ficou com a japonesa Homare Sawa.

Marta já falou sobre sua infância no nordeste brasileiro em várias oportunidades, quando jogava futebol embaixo de uma ponte com os meninos na cidade de Dois Riachos, localizada no Estado de Alagoas. Não à toa os irmãos mais velhos a avisavam constantemente para não jogar futebol, já que temiam represálias machistas de habitantes locais para com sua irmã. Seus irmãos se preocupavam tanto que chegavam ao ponto de baterem nela, advertindo-a de que futebol era um esporte unicamente masculino. Apenas com sua admirável força de vontade Marta conseguiu permanecer jogando, mas infelizmente ela teve que deixar o Brasil para poder competir com e contra atletas profissionais, no Umea IK da Suécia (onde conquistou quatro campeonatos nacionais e uma taça europeia), passando pelos EUA no Los Angeles Sol, Western New York Flash e voltando ao país nórdico para defender o Tyreso FF.


Futebol feminino no Brasil. São José é o atual campeão do país.
Nesse período, ela voltou brevemente ao Brasil para defender o Santos em duas oportunidades, tendo vencido a Copa do Brasil e a Copa Libertadores de futebol feminino. Mas uma vez que o nível de 98% das atletas do torneio não era o suficiente para uma estrela mundial como ela, não a preparando o suficiente para competições posteriores.

Apesar do descaso da CBF para com sua liga, sendo esta muito inferior e indigna de um país como o Brasil, e de atos que aparentam poucas mudanças relevantes, aparentando até que nada mudou desde a proibição de 1941, agora ao menos há líder do sexo feminino que mostra ganas de tentar mudar o panorama machista do país. Em Dilma, o país vê alguém contra a tradicional oligarquia masculina nacional e desde o começo, ela se mostrou repúdio e em completo desacordo com a Confederação Brasileira de Futebol.

Mas ainda com um governo dito progressista, se reconhece o quão difícil é tentar mudar e redimir erros e certos preconceitos já consumados na raiz do povo brasileiro de modo geral.

Independente de o panorama estar longe do ideal, jovens garotas aspirantes a estrelas do futebol tem em Marta, Cristiane e Daniela, os exemplos de que o esporte não é algo apenas para homens e que sim o sucesso é possível. Mesmo com a falta de apoio até mesmo da mídia brasileira, que exibe poucos e ultrajantes exemplos de preconceito e descaso, sem nunca ter sido questionada por isso.

No começo do século XX, o Uruguai inspirou seus vizinhos vencendo os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo. Quem sabe não estamos diante de um fenômeno similar acontecendo, dessa vez com o futebol feminino, no começo do século XXI?

CLIQUE AQUI  e confira a versão original em inglês.

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* A Carta da Redação é a coluna que reflete o posicionamento editorial do redatores do blog Redação do Esporte em relação aos mais variados temas da atualidade no esporte.



por Mark Biram
| direto de Newcastle (Inglaterra) | @markbiram |
cafefutebol.net

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